Indígenas de Luciara denunciam ataques de fazendeiro

Os indígenas denunciaram o atentado em Boletim de Ocorrência (BO) registrado no dia 3 de janeiro deste ano na Delegacia de Polícia do Porto Alegre do Norte

Indígenas de Luciara denunciam ataques de fazendeiro

Foto: Reprodução

Há três meses, indígenas do povo Kanela do Araguaia estão sob sucessivos ataques por parte de um fazendeiro. O foco da tensão é a terra indígena Aldeia Porto Velho, que fica no município de Luciara, no nordeste do Mato Grosso. Na manhã do último dia 8 de novembro duas lideranças sofreram um atentado. Domingos Crisóstomo Lima e Wanderley Pereira Rocha desciam para pescar na lagoa Água Suja, que fica na Terra Indígena, quando foram surpreendidos por tiros disparados por três pistoleiros. Os dois Kanela do Araguaia conseguiram escapar sem ferimentos.

Os indígenas denunciaram o atentado em Boletim de Ocorrência (BO) registrado no dia 3 de janeiro deste ano na Delegacia de Polícia do Porto Alegre do Norte, a 710 quilômetros em linha reta de Cuiabá, a capital mato-grossense. No BO, eles apontaram como suspeito de mandante do ataque o fazendeiro Lorcir Otto Bubans, que alega ser proprietário das terras, onde se localiza a aldeia, desde 2005. O fazendeiro é conhecido na região como comerciante de terras e ex-cartorário do município.

Em entrevista à Amazônia Real, o indígena Wanderley Pereira Rocha disse que, depois do ataque, o fazendeiro Lorcir Bubans afirmou publicamente, no dia 7 de dezembro, que a comunidade teria o prazo de até 5 de maio para sair da área. Rocha disse que recebeu uma ameaça por telefone.

“Eu liguei para o senhor Lorcir no dia 31 de dezembro do ano passado [2021]. Ele falou para mim que ele é o terceiro possuidor da escritura e que a terra foi comprada em 1984 do estado de Mato Grosso. Ele disse que não vai dar a terra dele para ‘vagabundo nenhum’ e que não reconhece a minha existência nem a existência da etnia Kanela”, contou Wanderley à reportagem.

A reportagem da Amazônia Real procurou o fazendeiro. Lorcir Bubans negou as acusações. Leia a versão dele sobre o conflito no final desta matéria.

Conforme o BO, a Polícia Civil classificou a denúncia dos indígenas Kanela do Araguaia contra o fazendeiro como crimes contra o patrimônio, esbulho possessório (caracterizado pela perda da posse ou da propriedade de um determinado bem, através de violência, clandestinidade ou precariedade) e ambição.

Em nota, o Ministério Público Federal afirmou que encaminhou, por meio do protocolo nº 08322.000964/2021-60, um pedido para a Polícia Federal investigar o caso e que atualmente o processo encontra-se em “cumprimento de diligências” para apurar a invasão ao território Kanela do Araguaia.

O processo de demarcação da Terra Indígena Aldeia Porto Velho está parado na Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2008. Em 2016, a Justiça Federal de Barra do Garças (MT) decidiu pela manutenção da posse dos 2.500 hectares do território povo Kanela do Araguaia. Na ocasião, o juiz Francisco Vieira Neto relatou as ameaças de expulsão contra os indígenas por pretensos proprietários.

“Proibido caçar e pescar”

No dia 9 de novembro, após o ataque contra os dois indígenas, o cacique Lucas Kanela, líder da aldeia Porto Velho, encontrou as marcas dos tiros em uma das árvores na beira da lagoa Água Suja. Ele também achou uma placa com o nome “Fazenda Flor da Serra”, nome da propriedade do fazendeiro Lorcir Bubans.

“Muitos já saíram da aldeia porque estão com muito medo. A aldeia é muito populosa, mas devido à pressão do Estado, que deveria proteger, e de pistoleiros, muitas pessoas mudam e vão embora para lugares mais tranquilos ou vão morar na cidade”, afirmou o cacique.

Na região, Lucas Kanela descobriu que a cerca de três quilômetros de comprimento feita para delimitar o território Kanela do Araguaia foi derrubada pelos invasores. O cacique disse que o fazendeiro Bubans também colocou uma placa no território com a frase “proíbe caça e pesca no local”, que são atividades essenciais para a comunidade indígena.

O que diz o fazendeiro

Questionado pela reportagem da Amazônia Real, o fazendeiro Lorcir Otto Bubans afirmou que é proprietário da área vendida pelo estado e que é o terceiro dono da propriedade. Ele disse que comprou as terras de “três gaúchos”, mas não citou os nomes dos antigos supostos proprietários.

Bubans nega que tenha realizado o ataque e estabelecido prazo para os Kanela saírem da área. “Eu comprei essa área em 1984. Naquela época nem Kanela existia, nem se falava em Kanela. A minha terra é toda documentada, é uma área toda legal”, afirmou.

O fazendeiro diz apoiar as ações do presidente Jair Bolsonaro (PL) para não haver demarcação de terras indígenas. “Hoje os índios querem tomar conta do Brasil todo, mas não é assim. O caboclo não pode chegar e dizer que é dono do mundo todo. Estou com uma escritura que foi vendida pelo estado de Mato Grosso para um cidadão. Este cidadão vendeu para outro e nós somos o terceiro dono”, diz Bubans, que não sabe especificar de quem adquiriu as terras.

Por meio de nota enviada à reportagem, o MPF afirmou que a situação na aldeia Porto Velho é “sensível” porque outros indivíduos da mesma comunidade buscam reconhecimento como comunidade ribeirinha. Na nota, o MPF de Barra do Garças também afirma que “não cabe” ao órgão envolver-se na questão familiar da comunidade.

Sobre a invasão, o procurador responsável afirmou que requisitou investigação à Polícia Federal no dia 17 de novembro e as apurações encontram-se em andamento.

“O Ministério Público Federal esclarece que as representações e notícias encaminhadas pela comunidade indígena Kanela do Araguaia foram e são devidamente tratadas por esta Procuradoria, tornando-se, prontamente, objeto de apuração”, diz trecho da nota.

A assessoria de imprensa da Funai também foi procurada, mas não se manifestou sobre o assunto até a publicação desta matéria.

O descaso da Funai na demarcação

Com medo da data marcada para expulsar a comunidade, lideranças Kanela procuraram o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) para tentar retirar os invasores da Aldeia Porto Velho. Em reunião realizada na sede do MPF do município de Barra do Garças, no dia 7 de dezembro de 2021, o procurador da República Everton Aguiar Araújo disse aos indígenas que a comunidade precisaria entrar em contato com a Polícia Federal (PF) para conseguir a desintrusão da área, isto é, a retirada dos fazendeiros das terras da aldeia.

Além disso, o procurador afirmou, segundo os indígenas, que nos casos de terras indígenas não homologadas com decisão judicial favorável a responsabilidade de proteger a comunidade é da Funai. Os Kanela do Araguaia procuraram a Funai, mas o órgão respondeu que decisões internas recentes determinaram que a fundação não possui mais a responsabilidade de proteger terras indígenas que ainda não foram homologadas.

Recentemente, a Funai determinou, por meio de ofício que circulou no dia 19 de dezembro, que o órgão não terá mais responsabilidade de atuar na proteção de terras indígenas que ainda não foram homologadas. O ofício foi expedido pelo coordenador de Monitoramento Territorial da Funai, Alcir Amaral Teixeira, após consulta da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) à Procuradoria Especializada do órgão indigenista.

A decisão da Funai causou reação imediata nas organizações indígenas e indigenistas. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) divulgou nota na qual diz que a medida é inconstitucional. “O ofício em questão escancara mais uma vez o afastamento da atual gestão do governo federal de suas atribuições constitucionais na proteção dos direitos indígenas”, diz trecho da manifestação.

Neste jogo de empurra-empurra, a comunidade Aldeia Porto Velho permanece com medo e sob risco constante de novos ataques. Para Lucas Kanela, a atual coordenação do MPF no município de Barra do Garças dá poucas respostas aos indígenas da região, o que tem feito com que a comunidade Kanela do Araguaia se sinta menos protegida e corra mais riscos do que em tempos anteriores.

“Vamos ter que procurar a Defensoria Pública da União (DPU) para tentar resolver o problema, porque tanto a Funai quanto o MPF não deram as respostas que precisamos”, afirma. “Já procuramos vários advogados e todos eles dizem que é um direito constitucional nosso, que os órgãos públicos precisam respeitar isso”, completa.

Histórico de violações de direitos

Estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) indicam que há pelo menos 74 anos os Kanela do Araguaia, no Mato Grosso, vivem nas terras da Aldeia Porto Velho, no município de Luciara. Isto é, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, data que foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para criar a tese do marco temporal para as demarcações dos territórios no Brasil.

A Constituição, no artigo 231, reconhece aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, atribuindo à União o dever de demarcá-las e protegê-las.

No STF tramita uma ação que pede a anulação do marco temporal. Se a tese for aprovado pelos ministros, mais de 300 terras indígenas estarão com as demarcações ameaçadas.

Conforme o estudo “Histórico de ocupação da etnia Kanela do Araguaia na região nordeste do Mato Grosso”, do Projeto da Nova Cartografia Social da Amazônia, os Kanela do Araguaia têm parentesco com os indígenas Canela Apaniekrá do Maranhão. Como os Krahô, eles falam uma mesma língua da família Jê, no tronco Macro-Jê.

Atualmente cerca de 7 mil indígenas Kanela do Araguaia vivem em três territórios no Mato Grosso: Aldeias Nova Pukanu, Porto Velho e Tapirapé; todas aguardam a demarcação pela Funai.

“Os primeiros membros da etnia Kanela-Apaniekrá”, explica o procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis, no Mato Grosso, “aportaram no Vale do Araguaia após intensos conflitos pela posse da terra em sua região de origem, no município de Barra do Corda, no Maranhão. Refugiaram-se e assentaram-se na região do Araguaia ainda na primeira metade do século XX. No período, diversos grupos da etnia Kanela, fazendo semelhante trajeto, instalaram-se nos municípios de Luciara, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia e Canabrava do Norte, todos na região nordeste do estado de Mato Grosso, formando os quatro troncos familiares nos quais atualmente se organiza a comunidade indígena”.

Amazônia Real
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